Acordamos no estacionamento do shopping. Estávamos felizes de ter tomado a decisão de ficar ali. Dormir no Farofamóvel foi mole e o lugar era super tranqüilo.

Agora o lance era catar um wifi para dar upload no relatório.  Próximo ao estacionamento tinha um “Comedor” e lá fomos nós com o notebook no sovaco. Tomamos o “desayno” delicioso. Algumas Migas,que são sanduíches argentinos sem cascas feitos  na chapa, café expresso e “media lunas” que são croissants. Não tinha wifi! Frustrados, atravessamos a rua e fomos ao bar Bonye and Clyde, sim, aquele mesmo da noite retrasada. Tomamos outro café e nada de Wifi naquele dia!!  Frustrados, voltamos para o carro agora com o objetivo de arrumar a papelada do fedorento.

Fomos para a Fenasa, que é o órgão argentino que cuida disso, seguindo o mapinha do iphone. Chegando lá tinha um cara saindo algemado com seis policiais dando uma prensa nele.  A documentação do cachorro do cara devia estar toda errada... hehehehe...

A Ana ficou no carro com o Tapa e lá fui eu. Terceiro andar. Chego à seção dos cachorros e gatos. Lá dentro da salinha estava um senhor que ignorava a minha presença. Depois de fritar uns 30 minutos ele me atendeu.

Apresentei a papelada e ele diz:

-O senhor precisa ir a um veterinário pegar o atestado sanitário e pagar a boleta no Banco de La Nacion.

Sabendo que fecharia às três da tarde, desci as escadas correndo e fomos ao banco. Fila grande, mas andou bem rápido.

Depois fomos catar um veterinário.  Perguntei para um taxista, que na Argentina se chama Remiss, e ele disse ter um a umas 8 quadras.

-Te levo lá com o cachorro.

Entramos os três no taxi. O Tapa, todo feliz, foi no porta-malas sem saber que estava indo tomar umas agulhadas.  

Chegando lá, o veterinário Matias disse que seria bom dar uma anti-rábica nele e uns vermífugos injetáveis. Depois do Tapa mijar a sala do cara toda, começou a porradaria para conseguir furá-lo.

Missão comprida!

E agora tínhamos que voltar as oito quadras! Nenhum taxi queria levar a gente! Ótimo, boa oportunidade para eu perder alguns dos meus 300kg. A Ana estava apertada e precisava ir ao banheiro.

-Tem um posto lá na frente, vamos lá.

Ela vai em direção ao banheiro e volta rapidamente frustrada.

-Ué! Já?

-Abri a porta do banheiro e tinha um cara fazendo cocô!

-Hahaha!!!E o cara ficou envergonhado?

-Nada! Cagou solenemente...

-Hahahahahahahah!!!!

Tive um ataque de riso de meia hora.

Chegamos novamente na Senasa. Subi as escadas correndo e catei o “simpático” no corredor.

-Ok. Para qual país está levando o “perro”?

Comecei a metralhar o maluco:

-Chile, Bolívia,Peru, Equador,Colômbia, Venezu....

-Para, para, para!

Dava para ver no fundo dos olhos do cara o que ele pensava: “Esse brasileiro tá de sacanagem com a minha cara”

-Uno país apenas! Uno país!

-Pode ser dois?

-Ok, ok!  Bolívia via Chile, nada mais.

-Valeu!

E lá fomos nós rumo a Humahuca, terra dos cactos gigantes.

Lugar alaranjado, frio de noite e quente dia.

Um rio seco, corta a cidade e os habitantes locais são descendentes incas. 

 Povo indígena com a mesma fisionomia do pessoal do Peru e da Bolívia.

Chegamos com ventos de furacão de grau dois. Desviamos de algumas árvores deitadas no meio da estrada e fomos pro Camping.

 A idéia era tomar um vinho e comer uma picanha que tínhamos no carro. Mas tomar cana e comer carne a mais de 3.000 metros de altitude, no primeiro dia, não era uma boa idéia. Ainda mais naquele vento.

Fomos dormir. O frio era tão grande que o carro começou a estalar todo. As borrachas dos vidros começaram a dilatar e sair do lugar. O Tapa, mesmo de casaco, começou a chorar e levamos ele para trás para dormir com a gente.

Foi de matar... mas isso era apenas o começo.

Acordamos no dia seguinte congelados, assim como a água do Tapa, que virou uma pedra de gelo do lado de fora do carro. E o vento continuava muito forte. Uma poeirada danada. Tinha uma árvore perto do carro que ficou cheia de gelo.

Tentei abrir a porta do carro e estávamos presos!  A tranca travou e não dava para abrir por dentro! Ainda bem que mandei fazer janelas enormes, já pensando nessa possibilidade. Quando estava me preparando para sair pela janela vi um argentino, rastafári louro, desarmando sua barraca não muito longe.  Caraca! Como o cara dorme em uma barraca? Ele deve dormir agachado dentro da geladeira em casa.

-Amigo! Minha porta está trancada! Pode ajudar?

Depois de três tentativas ela abriu na marra...  Pókk

-Gracias , amigo!

O nariz da Ana sangrou de manhã, de tão seco e rarefeito é o ar no local.  Naquele dia fizemos um churrasco regado a muito vinho e uma picanha temperada com poeira e muita felicidade.

E caiu a noite. Era uma massa de ar frio fora do comum, mesmo para a região. Naquela noite nevou a menos de 50 km de distancia da gente. Essa noite foi de matar... mal dava para respirar. O único músculo que eu consegui mexer foi o do olho esquerdo. A Ana acordou chorando e tive pena dela. Não era frescura... outra noite dessas e um de  nós 3 poderia morrer congelado.

-Vamos descer hoje para Tilcara. Lá é mais baixo e deve ser menos frio.

Demos um role em Humahuaca e lá fomos nós naquela estrada linda, onde as montanhas tem mais de sete cores. Tem até uma montanha chamada “Sierra de las Siete Cores.”

Lhamas apareciam ao longo da estrada.

Chegamos em Tilcara e estava ainda mais frio!! Não era possível!!! Vamos comprar essas meias incas grossas e um aquecedor pro carro. Por menos de 25 reais achei um aquecedor que está salvando as nossas vidas.

Fomos a um restaurante que tinha internet. Mas como aqui é por satélite o negocio é lento demais. Mais lento que internet por telefone em 1995. Desistimos da web e comemos um carpaccio de lhama delicioso com uma cerveja local negra.

Quando chegamos no carro apareceu uma moça falando em português. Ela puxou conversa, pois viu a bandeira brasileira no Farofamóvel.  Era uma brasileira simpática, chamada Carolina, que morava ali.

-Estão indo para onde? Chile?

-Não, estamos tentando dar a volta ao mundo de carro.

-Ganhou na loteria ou algo assim?

-Não, estamos apertados de grana. É comida de supermercado e dormidas no carro 99% das vezes.  Você já fez as contas de quanto dinheiro se gasta para ficar parado no mesmo lugar? É uma montanha de dinheiro por ano.

Ela concordou e aproveitei para pegar umas dicas. É inverno e cruzar os Andes até o Atacama por trechos com quase 5000 metros de altitude pode ser mortal.

-Vamos lá à delegacia que eles passam um radio para a fronteira em Paso Jama. Se estiver fechado por causa da neve você fica sabendo.

-Maneiro!

Chegando lá ela me explicou que tem um tal de Vento Branco que vem do Chile. Quando entra não da para enxergar nada e é de congelar.

-Se o carro quebrar é morte certa.

O policial depois de algumas tentativas avisa:

- Está tranqüilo. Pode passar sem problemas.

- Oba!

Despedimos-nos da Carolina que nos deu seu email em caso de problemas.

-Conheço todo mundo daqui ao Atacama. Qualquer parada me manda um email que eu ajudo. Se a gente tivesse se conhecido antes, vocês poderiam dormir lá em casa...

Agradecemos a Carolina e fomos pro Camping.

Tilcara estava congelando naquela noite. Parecia um freezer. Mas o aquecedor foi nosso trunfo e a partir daquela noite perdemos o medo do frio da noite.

No dia seguinte fui sacar uma grana e comprar comida pro fedorento. Estava tendo uma festa na pracinha e vi uns caras com um papel nas costas escrito POLICIA. Achei engraçado e pensei: “Deve ser a SWAT local.”

Quando eu estava no teto do Farofamovel guardando os 10kg de comida do Tapa, ouço o alto falante: “Gustabo Bibaqua, comparecer no palanque.”

Tá de sacanagem! Tem um cara com um nome parecido com o meu aqui! E a voz continuava insistentemente : “Gustabo Bibaqua... Gustabo Bibaqua...”

Porra devo ter perdido algo! Fui lá correndo e aquela policia com o papel nas costas estava com meu cartão de saque do banco na mão. Envergonhado, agradeci muito e aprendi a nunca mais rir de alguém que tem um papel escrito POLICIA nas costas.

 Subimos os Andes em curvas fechadas e muito íngremes.

Passamos por cachoeiras congeladas e Guanacos, que é uma espécie de lhama mais magra e sem pelos.

Do lado de uma placa de 4100 metros, um vento absurdo e muito frio, um casal Argentino tirou uma foto pra gente. 

Alguns quilômetros depois chegamos ao deserto de sal de Salinas Grandes.

Lugar lindo.

Aquele chão branco do salar

... e até uma casa toda feita de tijolos de sal.

Com um vento e um frio absurdo exploramos o lugar. A Ana tirou uma foto com uma lhama que quase não se mexia, parecia estar acostumada com os cliques por ali.

Seguimos rumo à oeste. A próxima cidade seria Susques. Ali tem um hotel que fica entre nada e lugar nenhum. É o tipo de hotel que poderia ter, tranquilamente, uma placa na porta escrito: “Durma aqui ou morra.”

Era a quarta vez que eu passava ali, e claro, a quarta vez que ficava neste hotel a quase 4000 metros de altura. Lá é tão frio que o Tapa dormiu no quarto com a gente. Mesmo dentro do quarto, com casacos, na frente do aquecedor e enrolado em 3 cobertores, o fedorento não parava de tremer. Naquela noite, nós 3 não dormimos, na verdade, hibernamos.

De manhã, o carro demorou muito para pegar. Isso é comum por ali. O motor literalmente congela e todas as peças ficam travadas. Depois de 5 tentativas... Vrummmmm. Beleza!

Neste hotel também tem o ultimo posto de gasolina até o Chile. Enchi todos os tanques, inclusive os 2 do teto para atravessar a tenebrosa parte alta do Atacama. E no inverno!

A dona do hotel avisou que a 5 dias atrás esta estrada estava com 4 metros de neve e que por isso ficou 4 dias fechada. Mas hoje, nós poderíamos passar. “Medaaaa....”

Enquanto nós entupíamos o Farofamóvel de diesel, apareceu um paraguaio no posto com uma Mercedes ultimo tipo e começou a puxar conversa. Perguntei para onde ele iria, e ele disse que o destino seria Iquique no Chile. Lá ele compra carros super baratos, pois não tem taxas, e revende no Paraguay. Com 2 mil dólares dá pra comprar altos carros por lá, importados usados, vindo dos EUA.

Partimos  rumo a fronteira Argentina que ficava a 110km de distancia. Que estrada bela e inóspita. Parecia que estávamos passeando dentro de uma pintura. Em todo trajeto cruzamos com apenas 1 carro.

Chegamos em Paso Jama e a fronteira tinha melhorado bastante sua infra-estrutura. Agora tem um posto YPF com Stop and Shop com diesel barato. Até um motelzinho novo agora existe ali. 

 Aquele lugar inóspito precisava mesmo de um apoio.  Dentro do Stop and Shop encontrei metade daquela galera de BH, que conheci em Salta na Toyota. Eles estavam voltando para Humahuaca e os ausentes, seguiram para o deserto de Uyuni na Bolivia.

Depois da burocracia de saída da Argentina tivemos que cruzar mais 160 km, de deserto inóspito e ar rarefeito, até a aduana chilena.

Lugar lindo demais... com neve em ambos os lados da pista. Vulcões, rios e cachoeiras congeladas nos acompanharam ao longo do percurso.

Fui atrás do carro pegar mais casacos e quase fiquei por lá mesmo, como uma estátua congelada. O pulmão não abria. Foi difícil respirar.

A Ana teve pressão baixa ao longo do percurso, mas mesmo assim, tirou centenas de fotos lindas.

Quando estávamos à 4830 metros de altitude e BUUUUM, passei por uma cratera enorme. Foi uma porrada e tanto! Fechei os olhos e torci pro pneu não furar.

Trocar um pneuzão destes a 5000 metros, com ar rarefeito, neve e ventos fortíssimos ia ser um perrengue memorável. Mas a decisão de comprar pneus novos, mesmo sem uma necessidade imediata, se mostrou acertada naquele momento e nada aconteceu.

Começamos a descer uma ladeira de 60 km. Fomos de 4800 a 2500 metros rapidamente. Começou a ficar quente e decidi parar no acostamento para soltar o Tapa para fazer xixi.

-Gustavo!! Não solta ele pelo amor de Deus!!!  Essa é uma área de Minas Terrestres!!!  - Gritou  a  Ana desesperada.

E era verdade. O goiaba estacionou o carro do lado de um arame farpado cheia de placas escritas : MINAS.  Ia voar pedaço de cachorro para tudo que era lado.

A fronteira do Chile com a Bolívia é cheia de minas terrestres, pois os países já entraram em guerra. Na verdade o Deserto do Atacama era da Bolívia, que após a guerra perdeu a área.

Chegamos na Aduana. O Tapa já morou naquela aduana por 3 dias quando foi embarrerado de entrar no país por ausência de alguns documentos. Lembro do cara avisando: “Se não buscar ele em 4 dias, vamos sacarificá-lo.” Grande mentira, na hora de ir embora eles imploraram para deixar o fedorento de presente para eles.

Logo na chegada, aparece um cara brasileiro com sotaque de catarinense perguntando se eu tinha visto algum caminhão brasileiro pelo caminho. Falei que tinha acabado de ver um estacionado atrás da aduana.

-Não! Aquele é meu. Ele está quebrado e estou esperando outro trazer o turbo para consertá-lo.

-Você está aí a muito tempo?

-Uma semana já...

-Pegou essa ultima nevasca?

-Peguei cara, foi foda.

-Conseguiu passar?

-Que nada... fiquei preso lá em cima, na neve e de noite. Os Carabineiros (policia local), foram me buscar de cavalo. Quase morri...

Fiquei impressionado com mais uma estória sinistra de caminhoneiro. Aprendi a admirá-los em uma travessia que fiz no Rio Amazonas. Durante uma semana convivi com os caras em uma balsa espremido entre os caminhões, ouvindo estórias heróicas.  A partir daquele momento entendi que não são os chatos que andam devagar na estrada, e sim grandes aventureiros que movem a economia do Brasil.

E vem o cara da Vigilância Sanitária exigindo os documentos do cachorro. E lá fomos nós para a salinha do cara. Na porta de vidro, reinava soberana e solitária, ao lado da bandeira do Chile, o adesivo amarelinho com um cachorro de mochilas correndo; escrito Viagensmaneiras.com.  Aquele adesivo está ali a quase 4 anos!! Fiquei amarradão!

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